Desde o início da pandemia, o ministro João Otávio de Noronha negou habeas corpus a pelo menos quatro investigados que pediam a soltura por motivos de saúde
Por
Matheus Teixeira e Marcelo Rocha, da Folhapress, Valor —
Brasília
12/07/2020 10h45 Atualizado há um mês
Andre
Coelho/Valor
O
presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), João Otávio de Noronha,
contrariou suas próprias decisões ao conceder prisão domiciliar a Fabrício
Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Ministros
de tribunais superiores e advogados ouvidos pela reportagem apontam ao menos
três aspectos jurídicos considerados inusuais no despacho do magistrado, que trabalha
para ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a uma vaga no
STF (Supremo Tribunal Federal).
O
mais gritante, afirmam, é a concessão de liberdade para Márcia Aguiar, a mulher
de Queiroz, que estava foragida. De acordo com especialistas ouvidos pela
reportagem, é muito raro, apesar de não ser proibido, um juiz dar benefícios a
quem foge para escapar de uma ordem judicial.
Márcia
não se enquadra nas hipóteses previstas no CPP (Código do Processo Penal) para
que tivesse a prisão preventiva convertida em domiciliar por decisão do
presidente do STJ, afirmou à reportagem um promotor de Justiça, especialista em
direito criminal.
Tem
direito ao benefício, de acordo com a lei, a pessoa que se enquadrar em uma das
seguintes situações: maior de 80 anos; extremamente debilitada por motivo de
doença grave; imprescindível aos cuidados especiais de criança menor de 6 anos
ou com necessidades especiais; gestante; mulher com filho de até 12 anos
incompletos; homem que seja o único responsável pelos cuidados do filho de 12
anos.
O
presidente do STJ fundamentou a extensão do benefício a Márcia ao fato de que
seria recomendável sua presença em casa para dispensar as atenções necessárias
a Queiroz, já que estará privado do contato de outras pessoas durante a prisão
domiciliar.
A
mudança de posição do ministro sobre os efeitos do coronavírus a presos de
grupos de risco também surpreendeu especialistas ouvidos. Desde o início da
pandemia, o ministro negou habeas corpus a pelo menos quatro investigados que
pediam a soltura por motivos de saúde, como fez a defesa de Queiroz.
Ao
soltar uma pessoa em razão da covid-19, criticou um delegado da Polícia Federal
ouvido pela reportagem, o tribunal deveria liberar todos do grupo do risco. Em
segundo lugar, acrescentou ele, o Estado tem condições de promover o isolamento
sem necessitar conceder prisão domiciliar.
Às
vésperas do recesso, a 6ª Turma do STJ negou pedido do ex-governador do Rio
Sérgio Cabral (MDB) para que sua prisão preventiva fosse substituída por prisão
domiciliar em virtude da pandemia. Para o relator do caso, ministro Rogério
Schietti, mesmo neste momento de crise sanitária devem ser mantidas as prisões
imprescindíveis para a garantia da ordem pública e da ordem econômica, da
instrução criminal e da aplicação da lei penal.
"A
pandemia do novo coronavírus será sempre levada em conta na análise de pleitos
de libertação de presos, mas, ineludivelmente, não é um passe livre para a
liberação de todos", afirmou Schietti.
O
terceiro fator que causou estranheza foi a concessão do benefício em decisão
sigilosa, o que é raro, uma vez que decisões como esta não costumam envolver
dados protegidos dos réus. O STJ informou à reportagem que o sigilo foi
decretado no habeas corpus que beneficiou Queiroz por ser o processo
"composto por elementos que correm em sigilo na primeira e segunda
instâncias".
Ministros
do STF receberam com surpresa a decisão de Noronha, mas apostam que a definição
sobre o caso deve ficar mesmo no STJ, sem subir para o Supremo nesse momento.
Isso porque a única possibilidade viável para o MP-RJ (Ministério Público do
Rio de Janeiro) reverter a decisão seria a apresentação de recurso ao próprio
STJ, uma vez que, em tese, só poderia acionar o STF se o despacho tivesse
violado alguma decisão da corte, o que não ocorreu.
O
Supremo só deve discutir o tema se a defesa de Queiroz pedir um maior
afrouxamento de medidas restritivas impostas por Noronha. Nesse caso, porém, o
STF não pode dar uma ordem que seja menos vantajosa que a situação atual do
investigado, ou seja, não poderia levá-lo de volta à prisão.
À
reportagem o advogado Paulo Emílio Catta Preta, defensor de Queiroz, afirmou,
nesta sexta-feira (10), que avalia recorrer à Corte pedindo a revogação da
prisão domiciliar do policial aposentado. Para ele, apesar de bem-vinda, a
decisão é tímida. "As pessoas pensam que prisão domiciliar é um spa de
luxo. Não. É uma prisão", disse.
Queiroz
foi preso no último dia 18 por ordem do juiz de primeira instância Flávio
Itabaiana, titular da 27ª Vara Criminal do RJ, que já quebrou sigilos de Flávio
Bolsonaro e determinou medidas contra outros investigados. Na quinta-feira (9),
porém, Noronha mandou soltar o policial aposentado sob o argumento de que a
situação se enquadra em recomendação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que
sugere o não recolhimento a presídio em face da pandemia do coronavírus.
Queiroz deixou o presídio e foi para a prisão domiciliar na noite desta sexta
(10).
A
medida representou um alívio para o governo. O principal temor de Bolsonaro e
seus aliados era o fato de o aumento da pressão psicológica de Queiroz, caso
fosse mantida a prisão no complexo penitenciário, o levasse a firmar uma
delação premiada. O grupo que ele integraria é alvo de apurações porque seria
responsável pela "rachadinha" no gabinete de Flávio quando era
deputado estadual.
Queiroz,
segundo do MP-RJ, seria o responsável por operar o esquema, ou seja, por
recolher e administrar os recursos desviados dos vencimentos dos servidores. Os
crimes teriam ocorrido entre abril de 2007 e dezembro de 2018 e envolveriam ao
menos 11 ex-assessores que têm parentesco, vizinhança ou amizade com Queiroz.
Neste
período, ele teria recebido, via transferências bancárias e depósitos em
espécie, mais de R$ 2 milhões.
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