quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Desvio de Caráter: apoiar Bolsonaro não é só “questão de opinião”

“Liberdade de expressão” é um negócio complicado. Longe de mim dizer que o conceito é errado, afinal, é por causa dessa liberdade que estou escrevendo essas palavras e você as está lendo neste instante. É graças a este direito, conquistado através de muita luta, que podemos divergir de ideias dentro de uma democracia. É por isso que podemos ter diferentes opiniões e ainda assim conviver pacificamente, respeitando uns aos outros. Porém, mesmo para a tal da liberdade de expressão, existem limites.

GIF Familícia Fora Bolsonaro - GIFs Familícia ForaBolsonaro Bolsonaro

Eu sei, chega a soar estúpido dizer isso, já que a antítese da liberdade é o limite, mas é só pensar um pouco a respeito e vai ver que faz sentido. Existe uma velha frase que diz que “o direito de um indivíduo termina onde começa o de outro”, e esta máxima se aplica na tal da liberdade de expressão. Na prática, isso significa que você pode se expressar como bem entender, contanto que não esteja ferindo o direito de outra pessoa de qualquer maneira, seja privando-a de se expressar, seja a ofendendo de alguma maneira. Em suma, significa que você ainda pode expressar o que bem entender, mas terá de arcar com as consequências de suas palavras, que podem ser passíveis de punição. É aí que cai a tal da falácia de que “ter opinião não é crime”. Deixa eu contar uma coisinha pra vocês: as vezes, é crime sim.

Pra isso é preciso entender um pouco melhor o que é ter uma opinião. Para isso, vamos recorrer ao nosso amigo Michaelis:

sf (lat opinione1 Maneira de opinar; modo de ver pessoal; parecer, voto emitido ou manifestado sobre certo assunto. 2 Asserção sem fundamento; presunção. 3 Conceito, reputação. 4 Juízo ou sentimento que se manifesta em assunto sujeito a deliberação. 5 Capricho, teimosia. O. pública, Sociol: juízo coletivo adotado e exteriorizado por um grupo ou, em sociedades diferenciadas e estratificadas, por diversos grupos ou camadas sociais.

Parece que, na teoria, qualquer tipo de expressão que eu emitir de meus pensamentos e da forma que eu vejo o mundo pode ser considerado uma opinião. Eu posso dizer que quem fala bolacha está correto e biscoito é errado, posso afirmar com veemência que basquete é melhor que futebol e que a animação de Digimon tem uma história bem mais construída que a de Pokémon. É normal. Você pode discordar de mim, eu posso discordar de você e ainda podemos conviver em paz. A liberdade de expressão é mágica, não é?

Mas aí caímos no tal do limite. Existem algumas “opiniões” que nada mais são que preconceitos disfarçados (ou não-tão-disfarçados), que literalmente atacam a existência de outras pessoas, diminuindo suas causas, suas lutas, suas vidas. É um verdadeiro crime contra a moral e o respeito. Pessoas que expressam essas opiniões são o atraso da sociedade, a essência do pensamento retrógrado que invalidam anos de progresso e de evolução. O pior é quando quem expressa esse tipo de atitude é uma figura pública, formadora de opiniões, influência de massas. É aí que mora o perigo. É aí que falamos sobre aquele senhor ali em cima que sinto muito ter lhe obrigado a ver numa foto tão grande — mas é melhor ir se acostumando, porque ainda teremos de falar muito sobre ele.

Se cobrir com lona é circo, se trancar a porta é hospício

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Wladimir Costa (Solidariedade) fez alarde com seu foguete de confetes. O que muita gente não sabe é que o deputado faltou em 105 das 125 sessões da Câmara em 2015. Ainda assim, está em seu quarto mandato — e com esse show, pode ter conquistado o quinto.

Foi lá que tivemos cenas deploráveis, como o “deputado dos confetes” (imagem), pessoas dedicando seus votos a familiares e afirmando seu louvor a Deus em suas decisões políticas (afinal, ações políticas movidas pela igreja deram super certo no século XI, não é?). A coisa parecia ficar cada vez mais vergonhosa com o passar das horas, chegando ao ponto de haver troca de saliva entre os deputados Jean Wyllys (PSOL) e Eduardo Bolsonaro (PSC). Apenas para acalmar suas mentes confusas, não houve contato labial para a troca de cuspes, embora isso talvez conferisse um maior fator de entretenimento para o desastre que tivemos de assistir.

Quase nada de bom saiu do circo do medo que fez do Congresso seu palco (exceto conhecer melhor a cara da nossa política e um jogo de tiro ao alvo muito bem ambientado), mas isso tudo é apenas a ponta do iceberg. Dentre todos os deputados que faltaram com decoro em suas participações, o pior deles não foi o tal do Eduardo Bolsonaro supracitado, mas sim o seu pai,
Jair Messias Bolsonaro. Ele é o fantasma do Congresso que nos enche de medo sobre o incerto futuro de uma política extremista.

Como me faltam palavras para descrever seu discurso de voto, vou apenas deixar abaixo exatamente o que foi dito para que tirem suas conclusões:

“Neste dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história nesta data, pela forma como conduziu os trabalhos da casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve (sic). Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim!”

Caso prefira assistir, o que não faltam é vídeos da cena. Agora vou lhe dar alguns segundos para se recompor e tomar um ar antes de prosseguirmos.

De todas as barbaridades ditas pelo deputado, algumas claramente frutos de uma mente paranoica e perturbada por uma ameaça comunista que não existe, resolvi enfatizar dois pontos. O primeiro é o ponto onde ele enaltece o presidente da Câmara dos Deputados por ser um dos principais nomes a dar início e prosseguimento no processo de impeachment, forçando-o através de todas as manobras possíveis. Neste ponto, temos de resgatar uma das frases mais icônicas do deputado Jair Messias Bolsonaro:

Bandido bom é bandido morto.”

Tudo bem, vamos por um instante aceitar que essa máxima defendida pelo deputado que acredita que violência se combate com violência seja apropriada, e que qualquer infrator da lei seja passível do título de “bandido”. Assim sendo, o que dizer do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que já foi denunciado pelo procurador-geral Rodrigo Janot e delatado pelo empresário Fernando Baiano por sua participação na Lava-Jato, que negou à CPI da Petrobrás que possuía contas no exterior e escondendo seus bens na Suíça, que tem ao menos três inquéritos no Supremo Tribunal Federal (21232984 e 3056) referente a sonegação de impostos e falsificação de documentos, que já está na mira da procuradoria para receber a pena de 184 anos de prisão.

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Com tantos dribles e manobras radicais, não sei quem sentiria mais orgulho de Eduardo Cunha: Francis Underwood (House of Cards) ou o skatista Tony Hawk.

Se a máxima do deputado for válida, não deveria Eduardo Cunha também ser morto? Ou, para Bolsonaro, o bandido só deve receber a pena máxima quando não servir aos seus propósitos? Ou então talvez o bandido só seja bandido quando não for da própria família, como é o caso do irmão de Jair, Renato Bolsonaro, exonerado por ser um funcionário fantasma e recebendo R$ 17 mil por mês. Outra possibilidade é que o deputado acredite que o único problema na vida do brasileira seja o bandido de rua, e não os milhões desviados e os crimes de corrupção passiva e ativa. Neste caso, fica difícil saber se é apenas falta de caráter ou pura ignorância.

Mas por incrível que pareça, o pior das afirmações de Bolsonaro nem foi a exaltação de Eduardo Cunha (eu sei, fica difícil de crer nisso depois dos parágrafos acima). Reparem no segundo nome que foi grifado no discurso de Jair. É agora que o assunto fica ainda mais nojento.

Quem foi Carlos Alberto Brilhante Ustra?

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É nessa hora que as pessoas ficam eriçadas, afirmam que as tais vítimas não passavam de presos. Bom, você sabe o que era necessário ser feito para ser preso no período da Ditadura? Ter liberdade de expressão. Se você hoje pode falar mal do governo e ofender quem você quiser no Palácio do Planalto, você deve esse direito aos que lutaram contra o regime militar. Naquela época, se você discordasse das atitudes dos fardados, seu destino podia ser bem pior do que a morte. Citando Evelyn Beatrice Hall, escritora da biografia de Voltaire, a máxima da luta pela liberdade de expressão é a de que “posso discordar do que você diz, mas lutarei até a morte pelo seu direito de continuar dizendo”.

Obviamente nem toda pessoa que foi parar nas garras de Ustra era apenas alguém que desejava a liberdade, existiam guerrilheiros ali, mas o próprio ato da tortura é impronunciável por si só. É desrespeitar a própria vida humana, descer nos confins da moralidade, trancar-se no porão e nem sequer acender a luz. É aceitar que não passamos de animais, e que os outros são ainda pior, são animais inferiores. É objetificar a vida.

Ustra cometeu algumas das maiores atrocidades da história brasileira. A Comissão Nacional da Verdade mantém registro das denúncias contra o coronel, dentre elas mesmo a tortura de crianças inocentes, as traumatizando pelo resto de suas vidas. Caso tenha estômago para ler, o que não faltam são relatos de vítimas das mãos do Dr. Tiribiçá. Confiram as fontes, não confiem em mim. Procurem no Google. Eu os encorajo a duvidar. Eu duvidei. Não queria acreditar que existem pessoas capazes de descer tanto. Me enganei.

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Ustra faleceu em 15 de outubro de 2015, aos 83 anos, sem jamais sentar na cadeira do réu. Apesar das denúncias, da luta pela democracia e das feridas que jamais irão se fechar, o coronel conseguiu se blindar até seu último suspiro. É um dos maiores golpes que a Justiça já recebeu, deixar o povo saber que existem pessoas que conseguem sair impunes apesar de cada atrocidade que cometeram. E sabe qual é o pior? Existe gente estúpida o suficiente para glorificar um monstro dessesE para glorificar o monstro que glorifica um monstro desses.

Apoiando um criminoso

A violência pregada por Bolsonaro não é apenas um mal, ele mesmo encarna a maldade. Abusou de sua imunidade parlamentar para atacar não a presidente, mas a mulher Dilma Rousseff, recorrendo a falácia do ad hominem. Por que ele mesmo não ressaltou o tal do motivo do impeachment, as pedaladas fiscais, ao invés de exaltar os fantasmas do passado? Será que ele mesmo reconhece que aquilo por si só não seria o suficiente para um impeachment não fosse os ataques de Eduardo Cunha?

Você vê que está no fundo do poço quando até Silas Malafaia está te criticando.

O fato é que Bolsonaro acabou por se colocar na posição de bandido ao se exaltar da maneira que fez. O artigo 287 do Código Penal afirma que é crime fazer apologia a ato criminoso ou autor de crime, e foi o ocorrido ao enaltecer Brilhante Ustra, um torturador. Os artigos 22 e 23 da Lei de Segurança Nacional também descrevem a criminalidade da propaganda e incitação à Ditadura. As palavras de Jair feriram a Constituição Federal, e isso faz dele um bandido. Será que bandido bom é bandido morto agora?

As ações do deputado levaram até mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil a se pronunciarpedindo a cassação de seu cargo. A comoção popular fez com que a Procuradoria-Geral da República também se manifestasse. Ao menos algo de “bom” isso fez a Jair: agora ele pode se igualar a Ustra como um criminoso. Só podemos torcer para que não passe impune como o coronel.

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Mas o que esperar desse tipo de pessoa, não é?

Isso tudo serve para mostrar qual é a verdadeira face de Jair Messias Bolsonaro e tentar levar um pouco de luz para os que, de forma inadvertidamente ignorante, o seguem achando que é o melhor para o país. Jair representa tudo de mal que temos em nossa sociedade, cada penamento retardatário e retrógrado preso no século passado e prejudica que possamos avançar de forma social. É um perpetrador de preconceitos, da pior espécie, que defende apenas os interesses das viúvas da Ditadura ou de pessoas tolas demais para entender que aquele período acabou por um motivo.

Defender Bolsonaro não é uma questão de opinião e nem ele nem você estão apenas praticando a liberdade de expressão. É desvio de caráter. É aceitar cada palavra dele como verdade, aceitar que a sociedade deve ser segregada, que a tortura deve ser praticada, que a vida não vale nada. Quando você o glorifica, você glorifica as ideias tortas que ele prega, você glorifica os ideais deturpados que ele acredita, você glorifica os monstros que ele martiriza. Quando você espalha a palavra dele, você faz parte do mal que divide nossa sociedade e causa milhares de mortes todos os anos.

Redigi esse texto pensando nas pessoas que eu vejo diariamente apoiando o deputado, e depois se blindando no “não termine amizades por causa de política”. Não as termino por causa de política, termino porque as tais amizades estão pisando nos direitos dos outros. Longe de mim fazer a tal da limpa na lista de amigos e ficar preso numa câmara de eco onde todo mundo pensa igual a mim. Gosto de debates políticos, gosto de ver novas opiniões. Mas este caso força meus limites. Por isso, eu preciso ter fé que as pessoas podem abrir os olhos, podem aprender. Se não for assim, só consigo ver uma névoa sombria em nosso futuro.

Se isso tudo não é o suficiente para te fazer entender porquê Jair Messias Bolsonaro é indefensável, eu sinto muito, mas não tenho nem o tempo e nem o giz de cera para explicar de uma forma ainda mais simples.

Liberdade de Expressão em Debate

Textos originais e traduzidos sobre liberdade de expressão…

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