sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O “sentimento constitucional” do povo

 BG: Reprodução – Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom e Fernando Frazão / Agência Brasil – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando

 Por Rodrigo Veloso Silva

 No dia 5 de outubro, a Constituição completou 32 anos de sua promulgação. Quase um mês antes, no dia 10 de setembro, o ministro Fux tomou posse da presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). E, em seu discurso de posse, citou um “sentimento constitucional” do povo, termo que deu margem a diversas interpretações e evidenciou contradições do ministro.

 

O presidente tentou deixar claro que ouvir e ponderar a “vontade” das ruas não necessariamente seria subjugar o judiciário à opinião pública. Em seu discurso chegou a citar uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição[1]. A partir dessas colocações são possíveis diversas conjecturas sobre até onde o “sentimento constitucional” brasileiro guiará o país sob a égide jurídica.

 

Fux parece encarar um sentimento constitucional bivalente: é preciso saber o que o povo almeja, porém, nem tudo lhe será concedido. Em 2015, por exemplo, Fux disse ser necessário “ouvir a sociedade”, se atendo a comentários da internet sobre julgamento de transexual expulsa de banheiro[2]. E, nesse caso, urge destacar uma das falas do Ministro Barroso no caso: “A maioria governa, mas submetida à necessária observância dos direitos fundamentais.”

 

Depreende-se claramente que a vontade da maioria precisa de ressalvas para manutenção e conquista dos direitos das minorias. O ministro procura afirmar que não teme desagradar a opinião pública[3], mas, por vezes, sucumbe ao que parece ser mais comum e populista.

 

Em um contexto mais recente o Ministro suspendeu decisão do decano Marco Aurélio no emblemático caso de André Oliveira Macedo. Fundamentações da decisão de Marco Aurélio à parte, Fux parece atender com destreza o anseio punitivista popular em matéria penal, tendo que ser “advertido” por seus colegas da corte sobre a suspensão da decisão monocrática. O atual decano do STF chegou a nomear a decisão como autoritária.

 

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Já em um contexto em que o ministro reverencia a Lava Jato, Fux parece novamente ser imbuído nesse sentimento constitucional das ruas – ou de parte delas. Entre as medidas de Fux cita-se a negativa de entrevista do ex-presidente Lula, em 2018, a qual foi caracterizada pelo próprio como uma “relativização excepcional da liberdade de imprensa”.[4]

 

Como presidente, Fux já fez alguns acenos à operação, como a liberação para julgamento de ações que contestam a implementação dos juízes de garantias. Tal medida impossibilitaria novas figuras como a de Sérgio Moro no processo penal, incumbindo a dois juízes fases distintas do processo. 

 

Ainda no populismo penal, Fux restringiu a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de flexibilizações de prisões em meio a pandemia, que tem números absurdos (de óbitos e contágio) também nas penitenciárias.

 

Como ponderar, então, essa força normativa constitucional e o sentimento do povo? Ressalta-se que, muitas vezes, a população acaba interpretando erroneamente alguns artigos, relativizando-os ou sobrepondo direitos.

 

O art. 142, por exemplo, teve de ser dissecado por juristas e legisladores para que não restasse dúvida que tal artigo não era uma previsão constitucional de intervenção militar, visto que, boa parte dos manifestantes usavam-no como fulcro para o pedido de intervenção.[5]

 

Outro fato recente que põe em pauta se realmente o “sentimento constitucional” deveria ser levado adiante diz respeito ao aborto legal. Recentemente, uma menina de 10 anos teve esse direito questionado. A gravidez advinda de abusos e que trazia risco de morte à criança foi interrompida, mas não antes do escárnio público. Posteriormente, uma portaria do Ministério da Saúde que dificultava o acesso ao aborto legal foi divulgada.

 

O sentimento constitucional parece ser dúbio, e deixa a hermenêutica jurídica ainda mais nebulosa. O direito à vida, a escusa de consciência, a separação de poderes e o processo penal, dentre outros, parecem matérias complexas para serem vistas sob a óptica do sentimento constitucional. Tais matérias não podem ser tratadas de maneira simplista, imediatista e, por vezes, revestidas de paixões. A corte suprema deve ser guardiã da Constituição e, por conseguinte, sua intérprete necessária e única. Pelo menos nesse momento.

 

 

Rodrigo Veloso Silva é acadêmico de direito na Universidade Estadual de Montes Claros.


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Notas:

[1] Discurso de posse do Ministro Fux. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/discurso-posse-fux-stf.pdf. Acesso em: 23/10/20

[2] Pedro Canário; In: Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-nov-19/fux-vista-julgamento-transexual-expulsa-banheiro. Acesso em: 23/10/2020

[3] Matheus Teixeira; In: JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/fux-afirma-que-juiz-nao-pode-ter-receio-de-desagradar-a-opiniao-publica-22012019. Acesso em: 23/10/2020

[4] João Filho; In: The Intercept Brasil. Para onde os ‘anseios da sociedade’ guiarão Luiz Fux, o novo presidente do STF? Aqui vão umas pistas. Disponível em: https://theintercept.com/2020/09/20/stf-brasil-fux/ Acesso em: 23/10/20

[5] Câmara Legislativa. Câmara emite parecer esclarecendo que artigo 142 da Constituição não autoriza intervenção militar. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/667144-camara-emite-parecer-esclarecendo-que-artigo-142-da-constituicao-nao-autoriza-intervencao-militar/. Acesso em : 23/10/20

Sexta-feira, 30 de outubro de 2020

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