sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Sobre o juiz combatente e o império da polícia militar

 Por Roberto Barbosa de Moura

 Uma encurralada que atinge todas e todos que trabalham no mundo jurídico penal é a seguinte: por qual motivo se abandona a atividade julgadora e a investigação policial, transmudando-se para o juiz combatente e a criminalização ser dirigida precipuamente pela polícia militar?

 

Esta indagação talvez seja o maior desafio de todas e todos juristas na atualidade brasileira, também sendo algo que possa justificar irracionalismos, que beiram o analfabetismo. Relembra-se, a título exemplificativo, julgados do STF em completa desconformidade constitucional e processual penal, tais como o HC 126.292[1], permitindo a prisão após segunda instância. E, de maneira mais recente, o SL 1.395 MC-Ref, fixando que a inobservância do prazo nonagesimal do art. 316 do CPP não implica na ilegalidade da prisão, devendo não mais haver o relaxamento de maneira automática. Assim, poderíamos suscitar uma miríade de casos que qualquer letrado ficaria estarrecido diante desses descalabros. 

 

Contudo, parafraseando Dallagnol – o direito é uma filigrana, ou como diria Tobias Barreto[2] – o sistema penal possui centro nevrálgico na política e não apenas no Direito ou na Filosofia. Neste sentido, o “comunista”, Luís Inácio Lula da Silva, e o traficante, André do Rap, são fins em que mediações jurídicas são irrelevantes, o texto já não se apresenta como limite para a vontade de punir, mas torna-se quando obstáculo, superável, e quando contribuinte, argumento jurídico fundamental. 

 

A política criminal brasileira nestes moldes é uma continuidade da Guerra Fria em que traficante e comunista são inimigos internos e externos, satanizados, como bem aponta Vera Regina Pereira de Andrade.[3]

 

Neste cenário, e aqui será enfocado o estado de Alagoas, é que 62%[4] dos presos reclusos nas unidades prisionais estão em prisão preventiva, quase sempre justificados sob o argumento da Ordem Pública, por outro lado de 458 processos julgados em 2016 em varas residuais de Maceió/AL, em 87,8%[5] os processos iniciaram a partir da prisão em flagrante delito. 

 

A regra não seria a prisão só ocorrer com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, devendo a prisão processual ser uma completa exceção? e não caberia à persecução penal estar lastreada em investigação preliminar, competindo o auto de prisão em flagrante ser um aditivo à criminalização secundária? 

 

Leia também:

O Estado Policial e a Guarda MunicipalO Estado Policial e a Guarda Municipal

Ao que nos parece Alagoas vem se tornando um laboratório inquisitorial, em que a figura do Juiz de Combate é protagonista dessa política bélica, nada democrática, vide a percursora 17ª Vara de Combate ao Crime Organizado de 2007[6], em que o CNJ agora não mais elenca como possível, já positivado pelo malgrado embrulho – art. 13 da Lei 13.964/2019, mas sim como exemplo para todo o Brasil no Combate ao Crime Organizado.

 

Mas, seriam os juízes responsáveis pelo combate ao crime organizado? Rubens Casara[7], magistrado carioca, em sua pesquisa de doutoramento identificou que 88% dos juízes em suas decisões levam sim em conta a segurança pública, e 64% acreditam que as decisões criminais produzem efeitos na redução da criminalidade. 

 

Portanto, eles acreditam, e contra a fé não há racionalidade que subsista, restando pouco os que julgam, e muito os que combatem.

 

A política criminal bélica além da construção do inimigo, e na crença da supressão do mal, depende da sua principal agência – a polícia militar, e cabe lembrar os ensinamentos de Foucault[8] ao mencionar que o juiz “(…) serve, no fundo para fazer a polícia funcionar”, assim, “a justiça está ao serviço da polícia historicamente e institucionalmente”. 

 

Este ensinamento se torna indubitável ao se deparar com o fato de que quase 90% dos processos criminais em Alagoas iniciam com o auto de prisão em flagrante engendrado pela polícia militar. Assim, a polícia militar ela não é apenas a quem diz o que será processado, pois é quem abastece o sistema de justiça criminal. Mas também, nos crimes de tráfico de drogas, é a principal fonte de prova, pois em 94,95% das vezes a testemunha é o policial, e em 62,33% é apenas o agente de segurança pública[9].

 

Por decorrência, a suspensão do art. 3º-A, pela Medida Cautelar na ADI 6.298, de Relatoria In Fux We Trust, o qual sustou a estrutura acusatória, nada mais fez do que colocar a cabeça do Código de Processo Penal onde os pés pisam, ou seja, na estrutura bélica e inquisitorial do sistema penal brasileiro. 

 

Ao fim, diante da irracionalidade do sistema penal, da construção satanizada do inimigo, do juiz combatente e da matriz bélica da política criminal militar, o que fazer? A boa técnica jurídica se torna quase irrelevante nesta quadra, ceder para realizar negócios jurídicos com a liberdade também não parece ser um caminho que aqueles comprometidos com a humanidade devem tomar. O grande desafio, portanto, seria realinhar a teoria e a prática com a realidade histórica e social, engendrando uma força política suficiente para enfrentar tal maquinário. Caminho árduo. Mas, como diz Millôr: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.

 

 

Roberto Barbosa de Moura é pós-Graduando em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Bacharel em Direito pela Unit/AL. Procurador da ABRACRIM/AL. Membro do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Processo Penal – Unit/AL. Membro do Grupo de Pesquisa Estado, Direito e Capitalismo Dependente/UFAL. Coordenador Adjunto Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim/AL. Coordenador Nacional Adjunto do Grupo de Estudos Avançados do IBCCrim. Advogado Criminalista.


Justificando não cobra, cobrou, ou pretende cobrar dos seus leitores pelo acesso aos seus conteúdos, mas temos uma equipe e estrutura que precisa de recursos para se manter. Como uma forma de incentivar a produção de conteúdo crítico progressista e agradar o nosso público, nós criamos a Pandora, com cursos mensais por um preço super acessível (R$ 19,90/mês).

Assinando o plano +MaisJustificando, você tem acesso integral aos cursos Pandora e ainda incentiva a nossa redação a continuar fazendo a diferença na cobertura jornalística nacional.

[EU QUERO APOIAR +MaisJustificando]

Notas:

[1] Importante mencionar que o entendimento já foi superado nas ADCs, 43, 44 e 54. 

[2] BARRETO, Tobias. Algumas ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir. In: Estudos de filosofia. 2ª ed.. São Paulo: Grijalbo; Brasília, INL, 1977, p. 229.

[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A mudança do paradigma repressivo em segurança pública: reflexões criminológicas críticas em torno da proposta da 1º Conferência Nacional Brasileira de Segurança Pública. Sequência (Florianópolis), Florianópolis, n. 67, p. 335-356, Dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-70552013000200013&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 18 Out. 2020. https://doi.org/10.5007/2177-7055.2013v34n67p335, p. 348. 

[4] SECRETARIA DE ESTADO DE RESSOCIALIZAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL – SERIS/AL. Mapa Diário da População Carcerária – Plantão de 02/09/2020 à 03/09/2020. Disponível em: http://www.seris.al.gov.br/populacao-carceraria. Acesso em 16 out. 2020.

[5] RIBEIRO, Marcelo H. M.; SAMPAIO, André R.; FERREIRA, Amanda A. A influência dos elementos de informação do inquérito policial na fundamentação da sentença penal condenatória: uma análise das sentenças prolatadas pelas varas criminais de Maceió/AL. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n. 1, p. 175-210, jan./abr. 2020. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.299, fls. 203. 

[6] Sobre a 17ª Vara de Combate ao Crime Organizado – MORAES, Thiago Mota de. Desconstruindo mitos: a polêmica 17ª vara criminal de alagoas (ou muita fumaça para pouco fogo). Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/desconstruindo-mitos-a-polemica-17-vara-criminal-de-alagoas-ou-muita-fumaca-para-pouco-fogo. Acesso em 18 out. 2020.

[7] CASARA, Rubens R. R.. Mitologia Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2015, fls. 208 e 209.

[8] FOUCAULT, Michel. Documentário Foucault por ele mesmo. Título original: Foucault Par Lui-même. Direção de Philippe Calderon. Duração: 63 min. Origem: França. Ano: 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To, Acesso em: 10 jul.2016.

[9] HABER, Carolina Dzimas (Org). Relatório final pesquisa sobre as sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública, 2018, p. 34.

Quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A inteligente jogada de Bolsonaro de concluir obras dos outros | Noblat

Para chamá-las de suas 30/08/2020 14:52:00   Noblat: A inteligente jogada de Bolsonaro de concluir obras de outros presidentes Para chamá-la...