Por Roberto Barbosa de Moura
Uma encurralada que atinge todas e todos que trabalham no mundo jurídico penal é a seguinte: por qual motivo se abandona a atividade julgadora e a investigação policial, transmudando-se para o juiz combatente e a criminalização ser dirigida precipuamente pela polícia militar?
Esta indagação talvez seja o maior desafio de todas e todos juristas na atualidade brasileira, também sendo algo que possa justificar irracionalismos, que beiram o analfabetismo. Relembra-se, a título exemplificativo, julgados do STF em completa desconformidade constitucional e processual penal, tais como o HC 126.292[1], permitindo a prisão após segunda instância. E, de maneira mais recente, o SL 1.395 MC-Ref, fixando que a inobservância do prazo nonagesimal do art. 316 do CPP não implica na ilegalidade da prisão, devendo não mais haver o relaxamento de maneira automática. Assim, poderíamos suscitar uma miríade de casos que qualquer letrado ficaria estarrecido diante desses descalabros.
Contudo, parafraseando Dallagnol – o direito é uma filigrana, ou como diria Tobias Barreto[2] – o sistema penal possui centro nevrálgico na política e não apenas no Direito ou na Filosofia. Neste sentido, o “comunista”, Luís Inácio Lula da Silva, e o traficante, André do Rap, são fins em que mediações jurídicas são irrelevantes, o texto já não se apresenta como limite para a vontade de punir, mas torna-se quando obstáculo, superável, e quando contribuinte, argumento jurídico fundamental.
A política criminal brasileira nestes moldes é uma continuidade da Guerra Fria em que traficante e comunista são inimigos internos e externos, satanizados, como bem aponta Vera Regina Pereira de Andrade.[3]
Neste cenário, e aqui será enfocado o estado de Alagoas, é que 62%[4] dos presos reclusos nas unidades prisionais estão em prisão preventiva, quase sempre justificados sob o argumento da Ordem Pública, por outro lado de 458 processos julgados em 2016 em varas residuais de Maceió/AL, em 87,8%[5] os processos iniciaram a partir da prisão em flagrante delito.
A regra não seria a prisão só ocorrer com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, devendo a prisão processual ser uma completa exceção? e não caberia à persecução penal estar lastreada em investigação preliminar, competindo o auto de prisão em flagrante ser um aditivo à criminalização secundária?
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Ao que nos parece Alagoas vem se tornando um laboratório inquisitorial, em que a figura do Juiz de Combate é protagonista dessa política bélica, nada democrática, vide a percursora 17ª Vara de Combate ao Crime Organizado de 2007[6], em que o CNJ agora não mais elenca como possível, já positivado pelo malgrado embrulho – art. 13 da Lei 13.964/2019, mas sim como exemplo para todo o Brasil no Combate ao Crime Organizado.
Mas, seriam os juízes responsáveis pelo combate ao crime organizado? Rubens Casara[7], magistrado carioca, em sua pesquisa de doutoramento identificou que 88% dos juízes em suas decisões levam sim em conta a segurança pública, e 64% acreditam que as decisões criminais produzem efeitos na redução da criminalidade.
Portanto, eles acreditam, e contra a fé não há racionalidade que subsista, restando pouco os que julgam, e muito os que combatem.
A política criminal bélica além da construção do inimigo, e na crença da supressão do mal, depende da sua principal agência – a polícia militar, e cabe lembrar os ensinamentos de Foucault[8] ao mencionar que o juiz “(…) serve, no fundo para fazer a polícia funcionar”, assim, “a justiça está ao serviço da polícia historicamente e institucionalmente”.
Este ensinamento se torna indubitável ao se deparar com o fato de que quase 90% dos processos criminais em Alagoas iniciam com o auto de prisão em flagrante engendrado pela polícia militar. Assim, a polícia militar ela não é apenas a quem diz o que será processado, pois é quem abastece o sistema de justiça criminal. Mas também, nos crimes de tráfico de drogas, é a principal fonte de prova, pois em 94,95% das vezes a testemunha é o policial, e em 62,33% é apenas o agente de segurança pública[9].
Por decorrência, a suspensão do art. 3º-A, pela Medida Cautelar na ADI 6.298, de Relatoria In Fux We Trust, o qual sustou a estrutura acusatória, nada mais fez do que colocar a cabeça do Código de Processo Penal onde os pés pisam, ou seja, na estrutura bélica e inquisitorial do sistema penal brasileiro.
Ao fim, diante da irracionalidade do sistema penal, da construção satanizada do inimigo, do juiz combatente e da matriz bélica da política criminal militar, o que fazer? A boa técnica jurídica se torna quase irrelevante nesta quadra, ceder para realizar negócios jurídicos com a liberdade também não parece ser um caminho que aqueles comprometidos com a humanidade devem tomar. O grande desafio, portanto, seria realinhar a teoria e a prática com a realidade histórica e social, engendrando uma força política suficiente para enfrentar tal maquinário. Caminho árduo. Mas, como diz Millôr: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.
Roberto Barbosa de Moura é pós-Graduando em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Bacharel em Direito pela Unit/AL. Procurador da ABRACRIM/AL. Membro do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Processo Penal – Unit/AL. Membro do Grupo de Pesquisa Estado, Direito e Capitalismo Dependente/UFAL. Coordenador Adjunto Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim/AL. Coordenador Nacional Adjunto do Grupo de Estudos Avançados do IBCCrim. Advogado Criminalista.
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Notas:
[1] Importante mencionar que o entendimento já foi superado nas ADCs, 43, 44 e 54.
[2] BARRETO, Tobias. Algumas ideias sobre o chamado fundamento do direito de punir. In: Estudos de filosofia. 2ª ed.. São Paulo: Grijalbo; Brasília, INL, 1977, p. 229.
[3] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A mudança do paradigma repressivo em segurança pública: reflexões criminológicas críticas em torno da proposta da 1º Conferência Nacional Brasileira de Segurança Pública. Sequência (Florianópolis), Florianópolis, n. 67, p. 335-356, Dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-70552013000200013&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 18 Out. 2020. https://doi.org/10.5007/2177-7055.2013v34n67p335, p. 348.
[4] SECRETARIA DE ESTADO DE RESSOCIALIZAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL – SERIS/AL. Mapa Diário da População Carcerária – Plantão de 02/09/2020 à 03/09/2020. Disponível em: http://www.seris.al.gov.br/populacao-carceraria. Acesso em 16 out. 2020.
[5] RIBEIRO, Marcelo H. M.; SAMPAIO, André R.; FERREIRA, Amanda A. A influência dos elementos de informação do inquérito policial na fundamentação da sentença penal condenatória: uma análise das sentenças prolatadas pelas varas criminais de Maceió/AL. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 6, n. 1, p. 175-210, jan./abr. 2020. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.299, fls. 203.
[6] Sobre a 17ª Vara de Combate ao Crime Organizado – MORAES, Thiago Mota de. Desconstruindo mitos: a polêmica 17ª vara criminal de alagoas (ou muita fumaça para pouco fogo). Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/desconstruindo-mitos-a-polemica-17-vara-criminal-de-alagoas-ou-muita-fumaca-para-pouco-fogo. Acesso em 18 out. 2020.
[7] CASARA, Rubens R. R.. Mitologia Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2015, fls. 208 e 209.
[8] FOUCAULT, Michel. Documentário Foucault por ele mesmo. Título original: Foucault Par Lui-même. Direção de Philippe Calderon. Duração: 63 min. Origem: França. Ano: 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To, Acesso em: 10 jul.2016.
[9] HABER, Carolina Dzimas (Org). Relatório final pesquisa sobre as sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública, 2018, p. 34.
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